O conceito de autofobia do movimento comunista internacional foi apresentado pelo filósofo marxista Domenico Losurdo no prefácio de sua obra “Fuga da História?”. Aliás, é o conceito-base deste livro que busca analisar os processos revolucionários russo e chinês sob a ótica do materialismo dialético, contrapondo-se à boa parte da historiografia já produzida, que costuma contar a história das revoluções comunistas como a “História dos grandes homens” – aqueles sedentos por poder que se mutilam até a morte em sanguinolentas ondas de “traições” aos Sagrados ideais do marxismo. O interessante é que este tipo de história é fomentada e produzida até por intelectuais que se dizem marxistas. Estes, enchem suas obras de termos consagrados do materialismo histórico (mais-valia, modo de produção, luta de classes, etc.), no entanto o fio de suas narrativas é conduzido não pela dialética materialista, mas por um idealismo ingênuo que coloca todo o peso da análise histórica em personagens individuais que se caracterizam pela fidelidade ou não fidelidade em relação à doutrina desenvolvida por Marx e Engels.
O dinâmico conflito entre forças históricas é apagado pelo papel de certos indivíduos nas esferas de poder das revoluções, transformando a história, em última instância, num campo de batalha de ideias, de espíritos. Não se olha verdadeiramente para a base material, para as contradições geradas por um processo histórico que coloca em choque uma tradição produtiva antiga com uma em processo de construção e de experimentação. Os próprios dilemas da governabilidade são separados de sua realidade material, ou seja, o caos e a desordem pós-revolução e pós-guerra são transformados em uma disputa entre ideias conflitantes. Em outras palavras, a Revolta de Kronstadt é reprimida porque houve uma traição a uma ideia (seja ela a de revolução dos marinheiros ou a de revolução dos bolcheviques) não porque dentro do processo histórico de construção de um novo Estado marcado pela intervenção imperialista estrangeira, qualquer revolta armada contra este projeto político represente um perigo enorme para a governabilidade e para sua manutenção.
Neste sentido, a dialética básica do materialismo histórico (matéria gera ideia, ideia constrói matéria) não só é destroçada como tem seu princípio invertido. A ideia agora gera a matéria e não há mais dialética. Aquele que tem a ideia mais perfeita, mais próxima de sua constituição Sagrada é aquele que tem a razão e que moldará a matéria de acordo com a teoria revolucionária. Porém, como tal mundo material perfeito jamais se concretiza e a realidade parece tão Profana, as acusações de traição se espalham como um vírus que pouco a pouco vai corroendo aquela breve unidade do movimento, fragmentando-o em seitas portadoras da Verdade e pavimentando o caminho da restauração reacionária.
Neste ponto exato é que retornamos ao conceito de autofobia para finalmente desenvolvê-lo. Autofobia é o ódio a si mesmo, geralmente ocorre em vítimas de experiências traumáticas e opressivas. Estas acabam aderindo ao ponto de vista dos opressores, de certa forma é uma tentativa de se adaptar e sobreviver a uma realidade de oprimido e inferiorizado. Este conceito é fundamental para a obra de Losurdo e está por trás até do título “Fuga da História?”, já que uma das manifestações da autofobia é a fuga da história, fuga da experiência traumática, fuga da dura realidade de conflito ideológico favorável ao opressor, que ainda se mantém firme e forte após a última vitória. E esta fuga da história apresenta-se exatamente sob a roupagem idealista que foi abordada acima. Ou seja, a história das “traições” é uma manifestação de autofobia marxista que, aderindo ao ponto de vista do opressor, vê a experiência real do socialismo como uma monstruosidade totalitária que só pode ser explicada (para a manutenção de pelo menos um respingo de identidade e aceitação) como uma grande traição aos ideais puros os quais ela se inspirou.
Portanto o conceito de autofobia está conectado ao par Sagrado/Profano de maneira profunda, demonstrando mais uma vez a importância da crítica irreligiosa desenvolvida por Marx para a compreensão da filosofia da práxis.